Friday, August 7, 2009

carta à minha pessoa.

Quase oiço o tilintar de uma sirene enervante, que me chama, dentro de mim.
Quase sinto o palpitar de uma bomba relógio que está prestes a sumir-se do peito.
As horas. Os dias passam. E nada. Agora, neste momento. Posso escrever mil e uma, mil e duas coisas. E nada fará mais sentido do que esta mesma folha antes de ter sido escrita.

Decidi então escrever umas coisas sem sentido. Ou será que algo para além de mim o decidiu antes disso? O que é o meu ego? Quem decide, quem faz as minhas decisões?
Eu ou ele?

Chamar-lhe-ei assim, carta à minha pessoa. Leio, re-leio, vejo, re-vejo. Penso, falo e falo sem pensar. Tento distanciar-me do que mais me arrepia, do que me causa frio. Identifico-me com pequenas coisas que vejo e que passam. Coisas que não são suficientemente inesquecíveis. Coisas das quais desconheço a sua existência, em menos de cinco minutos. Apetece-me escrever e não me aptece. Quero várias coisas e não as quero. Não sei definir isso. Porque motivo alguém que não se declare como sendo ‘decidido’ ou ‘sabedor’ de algo, seja isso o que for, teima em saber tão bem o que o define?
Porque escrevo isto? Aqui e agora? O que me define, a mim? E o que define o meu ego?

Não me apetece respeitar a minha própria estrutura. (In)Terna Revolta. Lembro-me de ter dado esse nome a um dos meus textos. Olho para trás e não me revejo neles. ‘Terei mudado assim tanto?’, perguntaria à partida. E tudo é tão óbvio quanto esta última frase. Tudo é típico e esperado. Até o inesperado se torna esperado, fácil, prevísivel. Sei-o tanto como sei onde estarei daqui a 10 anos – ironia também vale.

E já que este texto não tem mesmo o menor sentido, decidi continuá-lo. Sim, porque continuá-lo não faria sentido. Continuando...
Como disse anteriormente (e esta é a parte em que, uma vez que só digo bacorada, repetindo-me), aptece-me desrespeitar todo e qualquer limite da minha própria racionalidade. Quero poder destruir os vestígios do que guardo e guardo e guardo para mim, há coisa de milhares e milhões de minutos, no meu pensamento. Não sei como fazê-lo sem ser assim, de rajada e sem coesão alguma. Não sei como não utilizar palavras ou expressões que fiquem mal num texto, como ‘ficam mal’ ou ‘de rajada’ ou ‘bacoradas’.
Não sei e espero continuar sem saber. Só porque me aptece – isto também soa mal, além de desrespeitar as minhas próprias regras. Nesse caso, penso estar, a pouco e pouco, a conseguir um progresso, uma subtil evolução em todas estas ‘bacoradas’.

Observo e mais tarde relembro, um homem de barba comprida cujo caximbo desaparece por entre a mesma, de cada vez que o enigmático senhor o leva à boca, uma mulher loira, de vestido preto e batom escarlate que se passeia ao vento, por entre uma multidão de gente que quase pára, deixando-a passar. Palavras soltas num livro de rua que outrora terá sido vendido por bem mais que cinco euros, um homem dá-me um encontrão. Aguardei um pedido de desculpa. E poderia ter aguardado uma vida inteira, pois ainda conheceria o céu ou o inferno sem que o amável senhor me pedisse aquelas desculpas.
Estava na hora de partir, continuar. E a multidão continuava, stressada aos olhares de uns, quase inexistente para outros. Um casal de namorados contemplava-se mutuamente, qual Romeu e Julieta encharcados de piercings e uma ou outra tatuagem mais visível. Para eles, aquela multidão era inexistente. Sobravam apenas ele e ela. À volta dele, estava ela. À volta dela, estava um cachecol que a aquecia, e estava ele. Os seus olhares eram duas fontes que se cruzavam entre e entre si, formando um caminho único e impossível de interromper. As suas mãos entrelaçadas a alguma parte de cada um, tendo-se um ao outro. Voavam por cima da multidão, sem ver o mar de gente que corria apressada, sem ouvir o murmúrio das gentes que falavam alto, entusiasmadas. Sem cheirar o Inverno que enregelava a cidade e as crianças pequenas. Sem sentir o chão por baixo dos seus pés. Ali estavam. Ali ficaram. Fumava um cigarro e não me apercebi de que observara tudo aquilo que era tão pouco. E pensava ‘cada pessoa é um mundo’. Pensava ‘quantos mundos existirão dentro de um só mundo?’ E quantas coisas existem dentro de si mesmas?

Fumo, poeira. Pó, cigarros no chão, ofuscância de luzes que passam entre mim à medida que passam as gentes. Boinas, casacos de Inverno, cheiro a castanhas no ar. Crianças, observando as folhas que caem das árvores que ainda as têm. E que contemplam uma àrvore que ainda tem folhas que caem, agora e agora. Outra e outra vez. O casal continua ali, no mesmo sitio, abraçado como se nada acabasse hoje. Na verdade, hoje acabaria alguma coisa. Hoje, aquela árvore acabaria por ficar sem vestígio de folha. Hoje, as crianças acabariam por se deitar cedo, porque amanhã é outro dia e o de hoje há de acabar. Hoje, a mulher de vestido preto e batom escarlate acabará por tirar o seu batôm, limpando-o ou fazendo com que ele se desgastasse de alguma forma, até voltar a ser apenas um corpo de mulher sobre uma cama onde acabaria por dormir, hoje. Sem vestido, sem batôm. Talvez aquele homem acabasse por me pedir desculpa, ainda hoje. Talvez não. Mas o que parecia sentir aquele casal, não acabaria nunca. Pelo menos, não para mim. Assim, tirava uma fotografia, ainda que só em pensamento, do que julgava não existir. Assim pensei que talvez nem tudo acabasse hoje, claro. Mas um dia, eventualmente. E desejei que o amor de ambos não acabasse, nunca. Atrevera-me a proferir uma das duas palavras que não entendo, que não aceito. Que teimo em não dizer ou pensar. Sempre e nunca.


Sinto um leve toque nas minhas costas. Olhei. Atrás de mim e agora à minha frente, está um homem alto, de cabelo aloirado que reflecte luzes de Natal, incandescentes e cansativas. Agarrou-me numa mão. Disse-me: ‘Desculpa’. Eu páro, paraliso e continuo a andar. Ele agarra-me pelo braço, sem brusquidão. Entreolhámo-nos, eu disse ‘Não faz mal’ e tentei seguir. Segui, andando. Desta vez era ele quem ficara parado, como quem leva um forte encontrão sem que haja um pedido de desculpa por parte de alguém. E tocava uma música de fundo que não me sairia da cabeça. Não enquanto não esquecesse aquele encontrão. Não enquanto me lembrasse daquele pedido de desculpas. E por uma e outra vez, entrolhávamo-nos, procurando as nossas faces, por entre a multidão de gente que não parava, afastando-nos aos poucos.

No comments:

Post a Comment